Pouco mais de uma semana desde o show do Gil que assisti em Brasília, parte da turnê Tempo Rei (a última de sua carreira), e os ecos desse encontro continuam reverberando em mim. Ontem, domingo, coloquei a playlist do show para tocar (está disponível no Spotify) e fiquei mais uma vez me deixando emocionar pelas palavras e sons sábios de Gil. E, como sempre, fiquei sondando o que em mim ficou tão mexido com esse momento.
Comentei no instagram que fui a esse show esperando a tristeza de uma despedida. Gil está com mais de 80 anos, e essa é sua anunciada última turnê. Por mais que eu torça pra que esse anúncio seja uma estratégia, acredito que é muito possível que não seja. E acho que, no fundo, fui a Brasília no espírito de uma despedida triste, num certo luto antecipado pelo fim das possibilidades de ver ao vivo esse artista tão genial.
Imagino que me ler falando assim pode dar certa impressão de exagero. Mas eu tenho uma relação, digamos, visceral e íntima com a ideia de finitude. Não apenas aquela que associamos à morte, mas sinto que desde muito cedo entendi que o fim era uma possibilidade sempre à espreita. Há histórias anedóticas da minha infância que me marcaram como a menina que estava sempre antevendo o risco de um fim.
É uma lente melancólica pela qual se vê o mundo? Um tanto, mas, sabemos, capaz de dar certa potência e urgência. Se o fim pode acontecer a qualquer momento, como adiá-lo? Ou, enquanto ele não chega, como aproveitar? Há um modo de vida possível a se tecer a partir disso, sem dúvida alguma (e que bom).
Hoje percebo que essa proximidade com a ideia de finitude foi traçando caminhos, ainda que eu não tivesse muita consciência disso. Há alguns anos, por exemplo, quando minha opção pela psicanálise se tornou inescapável, praticamente uma convocação clínica e inconsciente, decidi obedecer a um chamado íntimo e ler Freud. Mas por onde começar? Decidi apostar em uma certa intuição e ler aquele texto de título tão intrigante e chamativo, quase que um convite: Luto e Melancolia. Um tempo depois, em análise, eu e minha analista concordamos que não havia mesmo aleatoriedade nessas escolhas inconscientes.
Porque se a ideia de finitude me é familiar, a de luto lhe é companheira - e junto dela todos os afetos que costumam compor esse quadro tão, digamos, delicado. Conheço o cenário, e nele me movimento com a sensibilidade (pela qual paradoxalmente sou grata) e com o desejo de ação que ele foi me dando ao longo da vida.
Digo tudo isso pra dizer que foi assim que cheguei ao Mané Garrincha no sábado passado. Antecipando as lágrimas que daria ao me despedir de Gil na última chance que eu teria de vê-lo ao vivo, pensando nesse fim que se aproximava. Mas, como quem me leu no instagram sabe (e quem não leu pode fazê-lo no @renatacrispimandrada), não foi exatamente isso o que aconteceu. E eu saí com o peito cheio de alegria pensando que a finitude pode ser celebrada e que o luto pode ser composto também de certa festa, algo como uma celebração pelo que se foi, ainda que isso não apague a tristeza pelo que já não é.
Mas ontem, enquanto eu ouvia a playlist do show, me detive na letra de Realce, música que sempre associei a uma enorme festa. Dessa vez, porém, notei que ali tem mais, muito mais que “apenas” a purpurina:
“Não se incomode, o que a gente pode, pode
O que a gente não pode, explodirá
A força é bruta e a fonte da força é neutra
E de repente a gente poderá
Realce, realce
Quanto mais purpurina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo de real teor
De beleza
Realce
Realce
Realce
Realce
Não se impaciente, o que a gente sente, sente
Ainda que não se tente, afetará
O afeto é fogo e o modo do fogo é quente
E de repente a gente queimará
Realce, realce
Quanto mais parafina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo de real teor
De beleza
Realce
Realce
Realce
Realce
Não desespere, quando a vida fere, fere
E nenhum mágico interferirá
Se a vida fere com a sensação do brilho
De repente a gente brilhará
Realce, realce
Quanto mais serpentina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo de real teor
De beleza
Realce
Realce
Realce
Realce”
Às vezes a gente não pode. Às vezes a coisa explode. Às vezes a força é bruta. Às vezes a gente sente. Às vezes a gente se afeta. Às vezes a gente se queima. Às vezes a vida fere. Às vezes as coisas acabam e os fins chegam. Há o luto, sim. Mas de repente, depois, a gente poderá, a gente brilhará.
Acho especialmente bonito que Gil diga que a vida fere com a sensação do brilho e que de repente a gente brilhará. Porque acho que talvez esse seja o paradoxo bonito e um tanto triste, o privilégio e a maldição de ter se amigado tanto da ideia de que o fim nos espreita o tempo todo: a gente arde com essa ideia agoniante, mas brilha também com a inteireza dos momentos cheios de beleza, aqueles que enchem e emocionam todos os sentidos, os eternos e fugazes segundos em que se sente plenamente vivo.
O sábado que passei ouvindo Gil foi assim. Fui esperando um fim e o encontrei. Mas o caminho até ele foi pura vida: lembrete magistral de que o tempo é realmente rei, mas que é justamente por isso que vale a pena realçar o afeto e a sensibilidade. Pra sentir tudo de real teor, até o fim chegar.
estava sentindo falta de receber um texto seu na minha caixa de entrada. amei a leitura e sua reflexão! ♥